Fiquei surpreso ao descobrir numa cadeira que cursei sobre Karl Barth que os leitores mais ávidos de sua dogmática, publicada em doses homeopáticas numa Alemanha sem dúvidas espiritualmente enferma, eram os pastores. Motivo: sua exegese bíblica e comentários teológicos abarcando todo o testemunho bíblico. Essa característica também marca o pensamento do eticista anglicano Oliver O’Donovan, seus livros são permeados por exegese e ricos comentários bíblicos. Sem dúvidas, O’Donovan é antes de tudo um teólogo bíblico. Assim, uma boa forma de apreciar seu pensamento, e *spoiler alert*, antecipar a publicação do seu livro *Ressurreição e Ordem Moral* pela Pilgrim, é lendo a bíblia com ele. Neste texto resumo sua leitura de 1 Pedro em *O Desejo das Nações* e *Ressurreição e Ordem Moral* e concluo falando algo sobre o testemunho moral da Igreja em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e o celibato. 

## A. 1 Pedro descreve a relação entre a alegria pascal e vida moral da Igreja.  
 
Em seu livro *O Desejo das Nações*, um exercício em teologia política cujo tarefa é explicar como e por que o governo de Deus confere autoridade ao governo humano, O’Donovan descreve a vida da Igreja como uma recapitulação dos momentos da vida e obra única de Cristo: seu advento, morte, ressureição, e ascensão. Em relação a ressurreição, O’Donovan nota que a abertura da carta de Pedro é moldada pela relação entre a alegria Pascal e a vida moral da Igreja.   
 	
“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, *que nos regenerou para uma viva esperança*, segundo a sua grande misericórdia, *pela ressurreição de Jesus Cristo* dentre os mortos,” (1 Pe 1:3, A21). Comentando neste trecho, O’Donovan diz que a ressurreição de Jesus Cristo confere nova vida à humanidade. Essa vida é dádiva de Deus e espera por sua plena realização no retorno de Cristo, e nisso “grandemente vos alegrais,” (NVI), ou “exultais” (A21), ou “pulais de tanta alegria” (minha tradução). Com a ressurreição de Cristo *no passado* e sua aparição final* no futuro*, a alegria da ressureição *no presente* é a característica decisiva da vida moral da igreja, mesmo diante do sofrimento sobre o qual, O’Donovan nos lembra, “esta carta terá algo dizer.” (O’Donovan, *The Desire of the Nations*, p. 182).  

O’Donovan antecipa a possível objeção de que tal alegria seja uma satisfação egoísta em nossa própria segurança futura. Ele responde que a alegria na ressurreição de Cristo é genuína por causa de seu vinculo com a *fé* e o *amor* a Cristo: “pois, sem tê-lo visto, vós o *amais* e, sem vê-lo agora, *crendo*, exultais com *alegria inexprimíve*l e cheia de glória. (1 Pe 1:8, A21). O’Donovan comenta que essa alegria pascal é a expressão interna do bem-estar da igreja, “a salvação de nossa alma,” (1 Pe 1:9, A21) que consiste em “ser livre do pecado para participar no gozo que a criação entretém em seu Senhor” (O’Donovan, *Desire of the Nations*, p. 182). Em seguida, nota O’Donovan, Pedro aponta para o desafio da vida moral a luz da esperança e alegria da ressurreição: “*portanto*, com o entendimento pronto para entrar em *ação*, tende auto-controle e esperai inteiramente na graça que vos é oferecida na revelação de Jesus Cristo.” (1 Pe 1:13, A21). 

O comentário de O’Donovan vale a pena ser citado in toto: 

> “Viver na esperança e na alegria da ressurreição não é uma questão de entusiasmo momentâneo de espírito, mas de uma atitude resoluta e determinada. A alegria deve governar nossos propósitos; a esperança deve ser “inteiramente”. O que significa: ‘como filhos obedientes, não sejam moldados pelos desejos da sua vida passada de ignorância, mas como aquele que os chamou é santo, sede santos em todo o vosso procedimento’ (1:15). É uma questão em aberto para aqueles membros da Igreja se sua vidas serão moldadas pela gozo exultante, que é a participação na nova criação de Deus, ou se serão moldados pelas velhas disposições e afeição habituais.” (O’Donovan, *The Desire of the Nations*, p. 158). 

E o mesmo, sem dúvidas, vale em relação a Igreja hoje. A vida ressurreta de Cristo já é uma realidade presente através do Espírito. É justamente a alegria e a participação nesta vida que a Igreja antecipa, e pratica de maneira especial, ao ser reunida por seu Senhor no dia da ressureição, o domingo. Logo, vale notar que é neste “portanto” (1 Pe 1:13) que reside a relação entre a alegria pascal celebrada no domingo e a vida moral na segunda, tanto individual como comunitária. 

## B.	1 Pedro dá suporte a afirmação teológica de que a ética cristã depende da ressureição de Cristo.  

Em seu livro *Ressurreição e Ordem Moral* (RMO), cujo objetivo é esboçar uma ética à luz do evangelho, O’Donovan nota que o Novo Testamento apela aos vários aspectos da mensagem evangélica como motivo para a obediência cristã. Por exemplo, Paulo *apela à morte de Cristo* como motivo para cristãos não se submeterem a regras obsoletas acerca de bebida, comida e dias especiais (Col. 2:16), e logo em seguida *apela à ressureição* como motivo para os cristãos buscaram as coisas do alto (Col. 3:1). Entretanto, a teologia não é mera repetição das Escrituras, antes busca explicar e explicitar a sua lógica. Logo, O’Donovan indaga sobre o que dá força e peso a essa diversidade de apelos morais. O’Donovan propõe que é a ressureição de Jesus Cristo, uma proposição teológica visto que não pode ser substanciada com uma citação direta do Novo Testamento. Mas por que a ressureição? Porque nesse ato Deus confirma cabalmente que a criação e a vida e a ação humana dentro dela são boas, assim como Deus julgou no início. (Gen. 1:31). Nas palavras de O’Donovan, a ressureição “nos fala da vindicação de Deus de sua criação e, portanto, de nossa vida criada” (O’Donovan, *RMO*, p. 13).  

Por fim, O’Donovan comenta que 1 Pedro, “o tratado teológico sobre ética mais consistente do Novo Testamento,” (O’Donovan, *RMO*, p. 13), também toma a ressureição como ponto de partida para a vida moral: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que de acordo sua grande misericórdia, nos *regenerou para uma esperança viva* através da *ressurreição de Jesus Cristo dos mortos*” (1 Pe 1:3). Logo, o texto serve como suporte a sua proposição teológica de que a ética depende da ressureição.  

## C.	1 Pedro exemplifica o foco duplo da ressureição de Cristo que inclui tanto a redenção quanto a transformação da criação.

Em *Ressurreição e Ordem Moral* O’Donovan também nota que a ressurreição de Cristo possui um foco duplo: “olha para trás,” falando que Deus *vindicou sua criação* e o lugar do ser humano nela, e “olha para frente,” ela promete a *transformação escatológica da criação*. Assim como a morte não tem mais domínio sobre Cristo *após sua ressureição* (Rm 6:9), e não terá sobre nós, a criação redimida também *não estará mais sujeita à corrupção* (Rm 8:19-21). O’Donovan nota que 1 Pedro exemplifica esse duplo-foco da ética cristã (o “olhar para frente” e o “olhar para trás”).  

Pedro caracteriza a vida cristã *de forma geral* em termos de “*uma esperança* posta inteiramente na graça” (1 Pe 1:13) (o "olhando pra frente") e, em seguida, descreve os deveres morais do cristão *de forma específica* em termos de submissão às *estruturas naturais da vida humana* (o "olhando pra trás"), particularmente, o governo, o trabalho, e o casamento (1 Pe 1:13, 2:13 em diante) e tudo isso “por causa do Senhor” (1 Pe 1:13). O’Donovan salienta a harmonia entre o caráter “radical” da visão geral  (“esperem *inteiramente* na graça”) e o caráter “conservador” do conselho moral específico (“*sujeitem-se* por causa do Senhor”). 

Essa harmonia existe porque “uma esperança que visa a transformação das estruturas naturais existentes *não pode atacar ou repudiar consistentemente* essas estruturas. No entanto, o 'conservadorismo' (se é apropriado usar a palavra) inclui *um senso de distância*, que brota de uma consciência aguda do quanto as instituições precisam de *redenção* e o quão *transitória* são sua forma presente.” (O’Donovan, *RMO*, p. 58). Aqui encontra-se um princípio importante para a ética social cristã: a afirmação das estruturas naturais humanos concomitante a um posicionamento critico em relação elas. Afinal, já vimos o que acontece quando, para citar apenas um exemplo, o amor pela nação é espiritualmente possuído pelo ódio contra quem não é do meu sangue e a da minha terra. No contexto brasileiro, briga de torcidas organizadas não está longe disso.

## Refletindo na leitura de O’Donovan: Casamento e Celibato  

1 Pedro é um texto importante para O’Donovan e, dos vários caminhos abertos pelo seus comentários, exploro um pouco o último deles. Tanto o pensamento moral secular quanto o cristão se referem a uma *transformação do amor ao qual o casamento testemunha*. Logo não é isso que os distingue! 

Por outro lado, lido teológicamente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma *escatologia secular*. Formalmente correta na medida em se refere a uma transformação do amor, materialmente errada por sua tentativa de realizar essa transformação *aqui e agora, à parte da obra de Cristo e seu retorno, e em repúdio e afronta à ordem natural do casamento* entre um homem e uma mulher. 

O pensamento moral cristão também fala sobre a transformação escatológica do amor. Jesus afirma que na ressurreição não haveremos de casar nem se dar em casamento. (Mt 22:30, Mc 12:25, Lc 20:35). O casamento tem um *fim*, tanto no sentido de *finalidade* como de *término*. O *fim* do casamento é (1) a fidelidade e amor mútuo, (2) a procriação, e (3) a santificação entre um homem e uma mulher. Na ressurreição já não iremos mais carecer desta instituição para testemunhar a fidelidade e o amor mútuo entre Deus e seu povo, a fecundidade entre Jesus e sua Igreja, e a santidade da nova Jerusalém. Por isso, ela *terminará*. 

Aqui penso que cabe uma advertência e um conselho a Igreja. 

### Advertência
Se a ressureição de Jesus vindica a ordem moral — o “olhar pra trás” — ela nos **impede** de seguir o pensamento secular e *afirmar o casamento entre pessoas do mesmo sexo*. Se a ressureição de Jesus promete a transformação escatológica do casamento — o “olhar pra frente” — ela nos impede de *idolatrar o casamento*, sendo este o senso de distância ao qual O’Donovan se refere. O testemunho moral cristão é um só, mas têm dois aspectos. De forma negativa, deve articular o porquê de rejeitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. De forma positiva, deve testemunhar à transformação escatológica do amor segundo as Escrituras. 

Entretanto, este testemunho jamais pode ser apenas teórico separada de uma forma de vida. Para testemunhar *aqui e agora* a transformação escatológica do amor *lá e além*, temos justamente o celibato — para alguns temporário, para outros permanente. 

### Conselho
Logo, igrejas que focam unilateralmente no casamento, mas esquecem que o celibato é um status igualmente digno e testemunha de forma única e eficazmente a transformação escatológica do amor terão um testemunho moral atrofiado às igrejas. Estas igrejas perderão de vista aquilo que nossos irmãos e irmãs, quer tenham atração por pessoas do mesmo sexo ou não, podem testemunhar sobre o amor na vida que há de vir. 

Por outro lado, o celibato sem a igreja também não basta. A vida *celibatária* se torna uma vida *solitária*, dissociada da promessa evangélica da realização plena do amor e da natureza social humana, à parte do casamento, na Cidade de Deus. Portanto, a igreja deve considerar como explicar o celibato de forma teológica para todos os seus membros, inclusive para os casados auxiliarem os chamados ao celibato no seu testemunho. 

Todos perdem algo na ausência do testemunho complementar do casamento e do celibato. Celibato não é ser encalhado, estar na fila de espera do romance. É entender a finalidade do casamento e seu testemunho, abrir mão deles para oferecer um testemunho moral, igualmente importante, sobre a verdade do evangelho sobre a vida que há de vir. 


Lendo 1 Pedro com Oliver O’Donovan: casamento entre pessoas do mesmo sexo e celibato

“Quando a sociedade está perecendo”, escreveu o Papa Leão XIII em 1891, “aqueles que a podem restaurar… [devem] chamá-la aos princípios de onde se desviou”. Essas palavras são tão verdadeiras hoje, como eram há 125 anos atrás. Em nosso tempo de convulsão social, insegurança e ansiedade, devemos considerar seriamente as orientações do Papa Leão XIII. Com o fim de nos ajudar a relembrar os princípios onde o pensamento social cristão foi fundado, é válido retornarmos para dois textos datados de 1891: a encíclica *Rerum Novarum* do Papa Leão XIII, sobre a relação entre os operários e o capital e o discurso [*A Questão Social e a Religião Cristã*](https://thepilgrim.com.br/catalogue/product/7221/) de Abraham Kuyper no primeiro Congresso Social Cristão em Amsterdam.
Esses dois trabalhos são, para as suas respectivas tradições – Católico Romana e Reformada –, fontes fundamentais para o pensamento social cristão do século XX. Embora muitas das circunstâncias específicas e das dinâmicas em voga sejam hoje diferentes do que eram há mais de um século atrás, o pensamento desses dois teólogos – um papa italiano e acadêmico e um político, professor e pastor reformado – forneceu uma sabedoria duradoura para articular e desenvolver um testemunho cristão ao mundo moderno.

- **Propriedade e Mordomia**

Provavelmente, o ponto central, tanto para o Papa Leão XIII quanto para Abraham Kuyper, seja uma concepção antropológica particularmente cristã. Em um contexto de mudanças sociais, eles enfatizaram que a visão cristã a respeito do ser humano não faz, absolutamente, distinção alguma baseada em classe ou qualquer outro construto social. A dignidade e a identidade inatas a cada indivíduo, devem ser respeitadas dentro do seu contexto de diversidade de oportunidades, dons, talentos e responsabilidades.

Para Leão XIII, um ponto crucial para determinar o relacionamento entre o trabalhador e o capital, reside no respeito ao direito à propriedade de cada indivíduo, seja ele rico ou pobre, proprietário ou trabalhador. 
O Papa Leão XIII escreveu o seguinte:

>O primeiro e mais fundamental princípio, portanto, é que, se alguém se compromete em aliviar a condição das massas, deve prezar pela inviolabilidade do direito à propriedade.

A maior afronta do socialismo à propriedade privada, é a apreensão que o governo faz dos frutos do trabalho e da reserva de capital. Contra a socialização da propriedade, o Papa advertiu que 

>o homem precede o governo e possui, anteriormente a formação de qualquer Estado, o direito de prover o seu próprio sustento.

Se a supressão dos direitos à propriedade é uma marca do erro socialista, a absolutização desses direitos – característica liberal de uma teoria individualista – é igualmente um erro. A compreensão cristã de propriedade, assim como de ser humano, opõe-se a ambos os erros. Frente a isso, o Papa Leão XIII distingue o direito à propriedade do direito de utilizar-se dela sem nenhum critério: “uma coisa é ter o direito de possuir dinheiro e outra é ter o direito de utilizá-lo a seu bel prazer”. Em outras palavras, **o direito à propriedade está ligado a responsabilidade de ser um bom mordomo**.
Kuyper começa a estruturar sua visão acerca da questão social afirmando a realidade fundamental do trabalho e da responsabilidade humana. Ele escreve, 

>nossa natureza humana foi posta na realidade que nos cerca, não para deixá-la intacta, mas para trabalhar, por meio das artes, instintiva e irrepreensivelmente, para melhorá-la e para a aperfeiçoar.

Esse trabalho de cultivo tem como frutos a propriedade privada, o desenvolvimento cultural e o progresso tecnológico. O cultivo não é direcionado ao engrandecimento pessoal ou à satisfação de desejos egoístas; antes, deve focar-se em servir o próximo, obedecendo, assim, ao mandamento de Deus.

O cristão, afirma Kuyper, deve testificar que não pode haver tal coisa como uma propriedade absoluta – exceto em se tratando do próprio Deus – e que nossas posses nos são dadas por Ele como um empréstimo.  As gerimos unicamente como forma de mordomia. Esse pensamento acarreta duas consequências. A primeira, de que há uma clara responsabilidade para colocar esses bens em prol dum serviço produtivo: “ninguém, a não ser o senhor Deus, pode nos livrar da responsabilidade de gerir essas posses”. A segunda, que há uma orientação social dessa gerencia que é direcionada ao nosso próximo: “não podemos, nunca, possuir algum direito à propriedade que não esteja em harmonia com a coerência orgânica da humanidade e, portanto, também com seus bens”. Leão XIII, sabiamente, interliga o direito fundamental à propriedade às claras obrigações morais de utilizar essas propriedades a serviço do próximo:

>Quem quer que tenha recebido da bondade divina uma maior abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens da alma, os recebeu com o fim de utilizá-los para o seu próprio aperfeiçoamento, e, ao mesmo tempo, como instrumento da Divina Providência, ao auxílio dos outros.

- **Subsidiariedade e Esferas de Soberania**

Quarenta anos mais tarde, as ideias da *Rerum Novarum* sobre zelo e responsabilidade social, foram formalmente articuladas sob o título de princípio de subsidiariedade. A principal declaração sobre esse princípio aparece na encíclica *Quadragesimo Anno* do Papa Pio XI, promulgada em 1931. O papa escreve que:

>(…) assim como é injusto subtrair dos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é auxiliar seus membros, não os destruir ou absorvê-los.

Desse modo, a subsidiariedade é um princípio que visa o respeito à diversidade social. Como o Papa Leão XIII escreveu, “naturalmente, existe entre a humanidade diferenças importantes e diversas. As pessoas diferem em capacidade, habilidades, saúde, força; uma sorte desigual é um resultado esperado em uma condição desigual”. Essa desigualdade não é, necessariamente, danosa ou resultante do pecado. De fato, Leão XIII declara, essa desigualdade está longe de ser desvantajosa, tanto para indivíduos quanto para uma comunidade. Uma vida pública e social apenas pode ser mantida mediante habilidades diversas, da capacidade para negócios até as muitas outras formas de atuação social; cada homem, via de regra, escolhe a parte onde melhor consegue encaixar sua vida ordinária.

Um correspondente desse conceito no pensamento kuyperiano é o princípio das esferas de soberania. Kuyper o articulou pela primeira vez (em sua defesa da criação de uma nova instituição educacional livre do controle direto da Igreja e do Estado)[https://thepilgrim.com.br/catalogue/product/3394/]. Enquanto as articulações modernas do princípio de subsidiariedade tendem a enfatizar a hierarquia das instituições sociais (que, para Pio XI, iam das *maiores e mais altas associações até as organizações subordinadas e menores*), o conceito de esferas de soberania de Kuyper – uma versão distintamente reformada da subsidiariedade –, enfatiza a igualdade formal de todas as instituições e esferas sociais diante de Deus. Kuyper pontua: 

>nossa vida humana, constituída de uma parte visível e material e outra invisível e espiritual, não é simples ou uniforme, mas constitui um organismo extremamente complexo. 

Devido a uma compreensão da soberania das instituições, deve-se respeitar a complexidade da vida social, tendo em mente que essa soberania deriva e é sustentada pelo próprio Cristo: 

>a liberdade humana está segura sob a soberania do Filho do Homem pois, não apenas o Estado, mas todas as outras esferas da vida reconhecem uma autoridade vinda diretamente dEle e, por isso, possuem soberania sobre sua própria esfera.

Essas visões sobre subsidiariedade, ainda que não idênticas, podem ser mais bem compreendidas como sendo ênfases diferentes ou até mesmo complementares. Uma é mais hierárquica, enquanto a outra é mais igualitária. Ambas, entretanto, pretendem refletir e respeitar a rica diversidade da vida social e das expressões institucionais da sociabilidade humana. No contexto das questões sociais do fim do século 19, esse princípio de diversidade ganhou maior expressão ao preocupar-se com a finalidade e a legitimidade da intervenção estatal nos relacionamentos sociais, tanto na família quanto nos espaços de trabalho. Tanto Kuyper quanto Leão XIII consentem com a validade da ação estatal na dinâmica de diferentes esferas, porém, estabelecem um claro limite para tais ações, compreendendo que essas intervenções devem ser temporárias e unicamente com o intuito de revitalizar e restaurar instituições corrompidas ou com mal funcionamento. Essa ação estatal não deve ser permanente ou uma característica plena da vida social.

- **Solidariedade e Universalidade das Esferas**

Se a subsidiariedade e as esferas de soberania respeitam a diversidade social, os princípios de solidariedade e de universalidade das esferas [1] respondem às realidades de unidade social. Por exemplo, a ação estatal será frequentemente necessária para aliviar o sofrimento, precisamente pelo fato de todo indivíduo ser criado à Imagem de Deus e possuir um vínculo e uma identidade compartilhada que conecta todos os seres humanos uns com os outros. Como Leão XIII escreveu, “se os preceitos cristãos prevalecerem, as classes se uniram, não apenas pelo vínculo da amizade, mas também pelo amor fraternal.”. São João Paulo II explicou posteriormente que a responsabilidade moral surge da solidariedade em conexão com a família e, dessa instituição de amor, para a sociedade [2]. A família, diz o Papa, é a primeira e mais eficaz escola de solidariedade

Tendo uma profunda preocupação com os pobres, Kuyper chama à atenção os cristãos complacentes com esta situação:

>(…) não há desculpas para uma situação onde nosso Pai celestial, por divina misericórdia, nos proporciona comida abundante vinda diretamente do solo, para seguir-se que, por nossa culpa, toda essa prosperidade seja distribuída de maneira tão desigual que, enquanto uma pessoa tem mais do que o necessário para comer, outros vão para suas camas com um vazio no estomago – isso se tiverem alguma cama.

Kuyper enfatiza a necessidade de uma ação imediata, não uma mera simpatia ou algum plano para reestruturar a sociedade. Tendo isso em mente, ele escreve, “ações, atos de amor, são igualmente cruciais. Obviamente, os pobres não podem esperar até a restauração das nossas estruturas sociais estarem prontas”.

Menos conhecido que o conceito das esferas de soberania é o conceito da universalidade das esferas. Tais esferas não são aspectos sem relação da ordem social, nem absolutamente isolados. Elas devem relacionar-se positivamente e em unidade com as outras esferas tendo em vista o florescimento humano. Essa unidade para qual o conceito aponta, não é, no entanto, uma simples unidade temporal, mas é orientada por uma unidade eterna dos seres humanos em relação aos seus iguais e com Deus. Deste modo, as esferas de universalidade estarão em pleno acordo com a solidariedade e o bem comum, contanto que estejam fundamentas na transcendência divina.

Para o Papa Leão XIII, o fundamento da existência temporal na eternidade é fundamental:

>As coisas da terra não podem ser compreendidas ou valorizadas sem levar em consideração a vida que está por vir, a vida que não conhecerá a morte. Exclua a ideia de eternidade e as nossas noções sobre moralidade e ética, pereceriam com ela, fazendo com que todo o esquema do universo se tornasse um mistério insondável e sombrio.

A solidariedade está também conectada com a ideia do Catolicismo Romano de destino universal dos bens. Assim como o Papa Paulo VI escreveu em sua carta encíclica *Populorum Progressio*, “ninguém deve apropriar-se de bens excedentes para seu proveito privado, enquanto outros sofrem sem as necessidades básicas para a vida”. Essa obrigação é baseada na ideia de que a Terra se destina ao uso e ao benefício comum de todos, o que leva ao entendimento que cada indivíduo possui o direito de trabalhar e prover para si mesmo e para a própria família.

Solidariedade e subsidiariedade são corretamente entendidos como necessariamente complementares. Eles podem ser usados como princípios para entender se as realidades de diversidade e unidade estão sendo respeitadas e compreendidas. Por exemplo, se uma instituição ajuda uma família que está passando por alguma privação material, essa ajuda apenas pode ser entendida como expressão da real subsidiariedade, caso as necessidades dessa família sejam supridas sem que ela seja colocada à parte da sociedade, fragmentando a comunidade. Para que esse auxílio seja genuinamente útil, ele deve curar e sustentar a comunidade. O objetivo dessa intervenção deve ser restaurar o bom funcionamento de uma comunidade debilitada, apoiando, assim, sua existência contínua. A ajuda, deve, portanto, ser oferecida como uma resposta à realidade da solidariedade, mas de modo que respeite as soberanias e diversidades institucionais.

- **A Questão Social Ontem e Hoje**

A Rerum Novarum do Papa Leão XIII e A Questão Social e a Religião Cristã de Abraham Kuyper inauguraram, há mais de um século, o pensamento social cristão moderno. A sabedoria que Leão XIII e Kuyper comunicaram em seus respectivos textos é útil para os cristãos hoje, porque demonstram um impressionante rigor intelectual e um senso aguçado com as questões sociais da época. Eles alinharam suas virtudes à fidelidade ao Cristianismo nos comunicando ideias eternas. Ao fazê-lo, acabaram por apontar para além das próprias concepções sobre o pensamento social cristão. Como o Leão XIII escreveu a respeito da vida social, “afastar-se de sua finalidade é caminhar para a morte, e voltar a ela é readquirir a vida”

Cristãos que procuram trazer soluções para as questões sociais de hoje e de amanhã, deveriam seguir o caminho do Papa Leão XIII e de Abraham Kuyper, começando por um discernimento da vontade de Deus à vida humana e da natureza constitutiva da identidade do homem criado à Imagem de Deus. É nossa responsabilidade diagnosticar os males de nossa cultura e entender as necessidades de nossos vizinhos, a fim de determinar qual o tipo de atitudes devemos tomar como resposta.


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